Primeiro bailarino do Theatro Municipal do Rio de Janeiro ele conta parte da sua trajetória artística nessa entrevista. Confira.
Marcela Benvegnu | [email protected]
Cícero Gomes Ribeiro, 33, é um carioca de Macaé, Rio de Janeiro, que aos dez anos, quando pediu que sua mãe lhe colocasse no ballet não imaginava que escolheria esse ofício para viver. Além de técnico e virtuoso, Gomes tem uma carga dramatúrgica única. Que quem o vê dançando, não esquece. Primeiro bailarino do Ballet do Theatro Municipal do Rio de Janeiro (TMRJ), ele ainda sonha em dançar obras especiais, enxerga a dança como uma ferramenta de educação, defende que ninguém pode ser rotulado e acredita que os festivais de dança são uma grande experiência cênica para os estudantes. Para ele – um artista Só Dança – que escolheu o Brasil como “casa” para dançar, ser primeiro bailarino do TMRJ é consolidação de um sonho de muito trabalho. Confiram os melhores trechos.
Qual a sua primeira lembrança na dança?
Desde muito criança gostava de dançar e minha mãe conta que ainda bebê, com dois, três anos eu já dançava. Eu tinha uma babá que sempre dançava comigo, era a maneira que ela me acalmava, prendia minha atenção. Com dez anos pedi para fazer ballet, porque tinha visto uma obra completa na televisão e, também, porque tinha ido chamar uma vizinha para brincar e o irmão dela me disse que ela estava no ballet. Chegando em casa pedi para minha mãe me levar, e assim ela fez.
E com essa idade você já fez sua primeira audição?
Sim. Minha primeira audição foi para a Escola Estadual de Dança Maria Olenewa (EEDMO) na qual me formei e para uma companhia profissional foi para Cia. Jovem de Ballet do RJ. Eu tinha apenas 15 anos e não entendia muito bem a importância disso. Passei, mas me lembro de estar muito nervoso. Terminei os estudos trabalhando e lá fiquei até seu encerramento por corte de patrocínio. Foram anos incríveis, trabalhei com inúmeros grandes coreógrafos e mestres.
Como foi sua entrada como bailarino no Theatro Municipal do Rio de Janeiro?
Eu havia sido convidado pela diretora da EEDMO, Maria Luísa Noronha, para dançar junto da escola num espetáculo para o Governador. E nesse espetáculo, a presidente do Theatro Municipal, Carla Camuratti estava assistindo. Quando terminou, ele veio até mim e me perguntou: O que você está fazendo aqui que não está no Ballet do Theatro? Respondi que não era possível entrar enquanto não houvesse uma audição. Ela me respondeu dizendo que iria me contratar. Óbvio, eu não acreditei. E não é que duas semanas depois eu recebi uma ligação me chamando para uma reunião para acertar um contrato? Fui contratado como solista e alguns anos depois teve um concurso público, o qual eu fiz e passei em primeiro lugar.
O que significa o Ballet do TMRJ para você?
Amor não se explica, apenas se sente. É mágico hoje estar dançando ao lado de pessoas que me inspiraram quando eu era criança. Me sinto com 15 anos de novo, toda vez que danço algum ballet que assistia. Volto no tempo e tenho sempre a mesma sensação, um sonho ainda não realizado. É como se ainda fosse um garoto mesmo. O TMRJ ainda é um sonho e prefiro que continue assim.
Você já dançou muitas obras. Quais te marcaram e porque?
Todas as obras que dancei foram marcantes, cada com sua particularidade. Todos os personagens têm um diferencial que me desafiam e me dominam. Mas por sua grande dificuldade, tanto técnica, quanto artística, creio que L’Arlesienne, de Roland Petit (1924-2011) foi o mais difícil e desafiador. Um personagem denso, esquizofrênico, suicida, introspectivo, com uma técnica muito pontual, arrojada. Não é a simples execução de um passo, mas existe uma maneira exata para ele ser feito. São 50 minutos de coreografia, que ao terminar o seu corpo sente que você dançou por horas. E é claro, o Bobo da Corte, de O Lago dos Cisnes, meu primeiro papel no TMRJ. Uma felicidade, um personagem livre, sem forma, que é pura felicidade e brincadeira.
Existe algum balé que você ainda gostaria de dançar?
Existe sim! Eu já dancei Eugene Onegin e fiz o Lenski, mas meu sonho é fazer Onegin, um personagem de características fortes, de andar pesado, elegante, até prepotente, mas ao mesmo tempo humano, que no fim se entrega a sua grande paixão, pena ser tarde demais!
O que é ser um primeiro bailarino? Qual a responsabilidade desse lugar?
Ser primeiro bailarino é consolidação de um sonho e um trabalho. Eu trouxe para mim a responsabilidade de quebrar todo e qualquer estereótipo ainda existente no Brasil. Ainda vivemos com pensamentos antigos e preconceituosos. Sempre tento passar para todos: não rotule, não seja rotulado, não somos produtos em prateleiras.
Não podemos esquecer que um grande bailarino tem grandes mestres. Quem te inspirou?
Todos os professores que tive na Escola foram de grande importância. Mas quem sempre esteve do meu lado, me ensinou a importância de cada detalhe e me fez dançar como hoje eu sei foi o Sérgio Lobato. Com ele aprendi tudo que sei. Com ele estudei, trabalhei na Cia. Jovem e posteriormente ele veio a ser meu professor, ensaiador e diretor no TMRJ. Hoje não trabalhamos mais juntos, mas sempre tenho a voz dele na minha cabeça. Ainda o escuto.
Quais outros lugares você passou além do TMRJ?
Como bailarino contratado eu só tive essas experiências, a Cia. Jovem, o Corpo de Baile do TMRJ (Theatro Municipal do Rio de Janeiro) e uma breve passagem pela SPCD (São Paulo Companhia de Dança). Como convidado já passei por vários lugares e países.
Quais as dificuldades da carreira de um bailarino profissional?
A dificuldade vem por estar em um país que não tem arte como prioridade. Infelizmente os governantes brasileiros não entendem que arte e cultura caminham juntasz à uma educação de primeira linha. Eu estou no Brasil, eu estarei no Brasil, eu fiz essa escolha. Tenho meu propósito e sei que já comecei a plantar o que sempre sonhei. Partindo do princípio que comecei a dançar depois de assistir a um ballet na TV, acredito que existam muitos outros “Cíceros” no nosso gigante país. Quis ficar e pensei, vou levar a dança e a arte a qualquer canto desse Brasil, e assim estou fazendo. Se nossos governantes não fazem, fazemos nós. Somos vistos como recreadores, não somos. Somos artistas. Um país sem cultura é um país sem memória, e um país sem memória não existe.
Você frequentemente é em jurado de festivais. Como vê esse segmento no Brasil?
Festivais são uma grande ferramenta para a educação dos jovens bailarinos. Digo educação por vai muito além de dançar, pois no palco se adquire experiência cênica.
É educativo por você estar ao lado de outras pessoas, pode ver modos diferentes de comportar, entende outras visões, modos de se lidar com o perder e ganhar. Digo isso não para falar de uma premiação, mas de conseguir ou não apresentar aquele trabalho feito em meses, anos. Sem contar na troca dos jurados com os participantes ao ler os comentários, conversar com eles, entender seus olhares, isso é importante. Nunca fui aluno da Suzana Braga, da Toshie Kobayashi ou da Eliana Caminada, mas todas me ensinaram muito nos concursos que participei
Hoje quando você dá aulas em cursos pelo Brasil o que quer passar para os alunos?
Quero muito que todos entendam que ninguém é igual a ninguém. Todos tem o seu valor e cada um é um. Ninguém deve ser taxado ou rotulado por nada. Todos podemos fazer o que queremos independente do que pensam de nós. Só existe um pensamento que devemos ouvir, o nosso. O nosso trabalho é que nos dá direção, não o que as pessoas pensam dele. Trabalhe e você logo mostrará o que e também quem você realmente é.
Quem é o Cicero do palco? O que você sente quando dança?
O Cícero do palco é um ser desprovido de qualquer vergonha, um artista de emoções completas que só tem dois propósitos: um é egoísta que é ser feliz e outro é para o próximo: que ele fique feliz e emocionado pela arte da dança.
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